A viagem - um dilema sobre o SER negro.

Este fato aconteceu nos idos dos anos 90, quando desenvolvia um projeto popular em favelas do Rio de Janeiro. Ensinava a língua inglesa para jovens daquelas comunidades, afim de que tivessem as mesmas chances que os indivíduos da classe média local. Ilusão ou não, contribuia com o melhor que tinha para que a inclusão social se estabelecesse e que a auto estima se fizesse presente, ainda que através de um pequeno grupo de multiplicadores, pois essa era minha intenção primordial, já que a favela não era meu habitat natural. Na época tínhamos uma parceria com uma escola canadense bilingue da grande São Paulo, com a qual desenvolvíamos um projeto de troca de cartas entre nossos alunos. Para eles, uma forma de seus alunos practicarem a escrita cursiva, que desaparecia como mágica diante dos teclados de um computador. Para nós, uma janela para um outro universo cultural, linguístico e social, o qual só tinhamos acesso através dos filmes com legenda, já que meus alunos deveriam se comunicar em inglês. Haviam entre meus alunos mentes brilhantes! Perguntava-me em momentos de indagações existencialistas, como seria se aquelas crianças inteligentíssimas tivessem as mesmas chances que outras mais abastadas por vezes tinham e sequer davam importância. Ao passo que tudo aquilo incentivava-me a continuar meu trabalho árduamente - por vezes ia para a favela e não podia voltar para casa por causa dos inúmeros conflitos entre o tráfico e a polícia local - queria dar mas àquelas crianças, e foi exatamente alí, em meio àquele insight, que comecei a traçar o plano que marcaria minha vida e meu corpo físico para sempre. A escola canadense estava desenvolvendo um projeto sobre Lasar Segall, e queria muito nosso projeto como parceiro. A parceria consistia na visita de nossos alunos a sua escola em Sao Paulo, seguida de uma viagem de alunos de ambas escolas ao Canadá, para um evento promovido pela "escola mãe" de nosso parceiro. O diretor da escola foi ao Rio de Janeiro, me ligou e encontramos em um luxuoso hotel em Copacabana, onde discutimos os detalhes de nossa parceria. Como todo o projeto era financiado por mim mesmo e pela contribuição simbólica de meus alunos - o projeto pertencia a eles - falei-lhe de nossas dificuldades financeiras em buscar patrocinadores para as nossas passagens aéreas, e entramos em um acordo que a escola entraria com 70% do financiamento e eu com 30%. Achei razoável e extremamente possível, e desdobrei-me a fazer mil traduções, dezenas de aulas extras na escola de inglês onde dava aulas na cidade, e contando com a ajuda de um amigo padre, a quem muito devo minha vida em várias circusntâncias, trabalhando em favelas do Rio. Um dia dedicarei um conto inteiro para falar de sua coragem e amizade. Após seis meses de trabalho intenso, consegui juntar o montante que precisava para enviar seis de nossas crianças para uma primeira aventura internacional. Essa experiência coroaria meu trabalho que já existia há mais de cinco anos, mas só conseguira algo de cunho concreto ali, naquela parceria. Somente depois de ter conseguido juntar a dolorosa quantia, é que decidi dividir com os pais o nosso projeto, e comunicar-lhes que não poderíamos envolver todas as crianças pois não tinhamos recursos para todos. Acordamos que os alunos com a melhor performance no idioma iriam, e assumiriam o compromisso de repassar tudo o que fôra discutido no intercâmbio entre os demais na volta da viagem. Seia alunos - três meninas entre 12 e 15 anos, e três garotos de 13 a 15. Todas as crianças etnicamente negras, fisicamente saudáveis, esteticamente belas, intelectualmente brilhantes. Tivemos reuniões durante todas as semanas que antecederam a suposta viagem. Esquecia de meus próprios afazeres domésticos para dedicar cem porcento de meu tempo àquele sonho que faltava muito pouco para se tornar realidade. Tudo saía de acordo com nossos planos, até que um dia antes de viajarmos, nossa história foi veiculada por uma televisão local, e foi aí que nosso pesadelo começou. A reporter iniciou sua matéria com o título CRIANÇAS NEGRAS DE FAVELAS DO RIO DE JANEIRO VIAJAM PELA PRIMEIRA VEZ EM INTERCÂMBIO INTERNACIONAL. Não sabíamos quem havia comentado com a mídia, e realmente não nos importaríamos em dividir, se a coisa não tomasse um rumo tão sensacionalista. A notícia foi ao ar ao meio dia, e desde aquela hora país não paravam de me ligar para dizer que seus filhos não eram negros. Seus filhos eram morenos, pois um de seus avós ou alguma outra pessoa da familia era branca. Que pior que ser chamado de favelado era ser chamado de "preto". Um de meus alunos, um jovem de 13 anos, ligou-me chorando dizendo que todos na escola agora o chamavam de negro. Um mundo de turbulências se instalou abruptamente em minha mente, e já não tinha mais claro com o quê me preocupar em primeiro plano, e mesmo como agir. Eram tantas as informações que me sentia afogado em dúvidas angustiantes. A imprensa que sensasionalizava nossa viagem, os país que se sentiam ofendidos por terem seus filhos chamados de negros, as crianças negando sua negritude, e uma comunidade inteira revoltada com a exposição pública de suas respectivas localidades. Marcamos um encontro geral para discutir tudo na noite daquele dia de pesadelo coletivo. Iríamos usar a sede da Associação de Moradores de uma das comunidades em que nosso projeto acontecia. Cheguei mais cedo que todos os nossos alunos e seus pais, e deparei-me com um cenário no mínimo assustador. Embora estivesse acostumado a ver pessoas armadas a caminhar pelas ruas das favelas, muitas delas crianças com menos de 15 anos, dessa vez vira adultos na entrada da Associação, usando revólveres e AK-47. Reconheci dois deles: - Um, o pai de meu aluno que chorava ao telefone. O outro, o irmão de um dos alunos que viajaria naquela noite. Outrora tratavam-me com respeito, nauquele dia o perdiam e mostravam um outro lado que eu jamais conhecêra. O pai de meu aluno gritou que eu havia chegado, e como se por encanto, várias outras pessoas da comunidade apareceram. Muitas delas as conhecêra de vista, outras se quer sabia de onde teriam vindo. Estava claro que se tivesse alguma sorte eu seu seria linchado publicamente, indo aos extremos de ser queimado vivio, naquilo que chamavam "micro-ondas", onde depositavam o indivíduo suspeito de traição dentro de vários peneus, e tocavam fogo, fazendo a vítima agonizar até a morte. Por alguma razão a qual nunca parei para pensar na profundamente, eu não estava como medo. Não sentia em momento algum nenhum receio, e mesmo a idéia da morte me assustava. Hoje percebo que minha confiança vinha da certeza de que cada uma daquelas crianças, embora relutassem para sair de onde estavam, ainda tinham como desafio maior a aceitação de sua própria raça. E que aquela construção ideológica não lhes pertencia, ainda que fossem receptáculos involuntários. E que valorizavam além de suas forças tudo o que lhes ensinara, e tentavam dar o melhor de si em tudo. E que aquela situação não fôra causada por nenhum deles, ou de seus pais, que não tinham perspectiva alguma a não ser ceder a todas as imposições sociais do ambiente onde viviam. Fui chamado por um jovem pai, que em um tom desafiador pediu-me para repetir publicamente que seu filho era negro. Portava uma AK-47, e movia-se tremulamente, o que percebi ser a sua ação algo involuntário, sendo forçado pela reação coletiva a tentar intimidar-me. Tentava não olhar-me nos olhos - creio que por medo de ser traído por suas emoções verdadeiras - e me afrontava com as armas que ornamentavam-lhe os ombros. Calmamente perguntei o porquê de tudo aquilo. Perguntei-lhes o que de errado eu havia feito para ser destratado por aquela comunidade a qual trabalhava por mais de seis anos, e que só queria ver seus filhos tendo o poder de escolha sobre seus futuros. Fui interrompido por uma voz feminina que defendeu-me dizendo que desde que eu ali pusera os pés, sua neta havia mudado para melhor na escola onde estudava. Aquela voz feminina ecoara sinceramente, e com ela outras vozes femininas que levantavam-se ao meu favor naquele tribunal popular comunitário. Cabisbaixo, meu aluno que havia chorado na escola ao ser chamado de negro, dizia que eu deveria ser punido, e que ele não se importaria seu a comunidade de desse um "corretivo". Outros alunos que lá estavam foram contra, mas decidiram que não mais iriam viajar no dia seguinte, e que eu não colocasse os pés na comunidade nunca mais. Gritei ensandecido que não! Enfrentei a todos os presentes com meu discurso dizendo que preferiria ser morto ali do que ter de matar um sonho que havia plantado naquela comunidade desde o primeiro dia em que ali pisei. Percebi que minha reação intimidou a todos, que não entendiam muito bem o motivo de minha coragem. E fitando o meu aluno nos olhos perguntei-lhe o porque ele tinha vergonha de ser negro. Mostrei-lhe a minha cor e dissera a ele que eu não era branco, e isso não me fazia sentir vergonha, embora também sofresse discriminação todos os dias na escola a qual lecionava inglês por não ter a tez branca. E que nunca me envergonhei ou morri por esse motivo. Reagi agressivamente e pouco me importava se morreria ou não,,ou se seria punido publicamente ou não. Ninguém poderia se interpor entre mim e meu sonho! Ninguém! E com autoridade gritei a todos que se não estivessem ali no dia seguinte com suas malas, prontos para viajar,muque perderiam a maior das oportunidades daquele momento em suas vidas. Lembrei-lhes que nunca tive essa oportunidade quando tinha as suas idades, e que não permitiria que aquela situação inusitada colocasse fim em um sonho que sonhamos juntos. E sai porta a fora, sem olhar para trás. Nunca me importei se levaria ou não um tiro em minas costas. Estava me sentindo muito magoado, ferido, devastado pela tristeza e pela decepção. Foram os mais longos minutos de minha vida e cada vez que virava uma esquina daquela comunidade, ficava imaginando como viver sem meu projeto; sem minhas crianças e sem nossos sonhos. Já não era eu quem falava, e sim o coletivo construído em mim pelas nossas lutas em comum. Naquele dia não fui para minha casa. Dividia uma casa em Botafogo com dois amigos, uma fisioterapeuta e um advogado, para quem nunca expôs nada do que ocorria em meus projetos. Fora para um hotel a fixe suas vidas não fossem colocadas em risco. Sabia eu muito bem o que era ser vitima da violência nas comunidades em que trabalhava, razão pela qual escolhi lá desenvolver minhas atividades. No dia seguinte fui para minha casa pela manhã, fiz as malas e segui para a comunidade. Ao descer na porta de uma igreja que ficava ao pé do morro, avistei cinco de meus alunos, todos com suas malas, faltando apenas um deles - o jovem que havia sido chamado de "negro" na escola. Decidimos em conjunto que eu iria a sua casa buscá-lo, e tentar pela última vez convencê-lo a ir conosco. Cheguei na porta de sua casa, um lugar bem pequeno sem reboco nas paredes, e percebi que havia uma mala na sala e alguém chorando. Chamei por seu nome, e fez-se silêncio. Ouvi barulho de água de pia correndo, e em seguida vi que meu aluno vinha em minha direção com os olhos vermelhos de choro e tristeza. Sem perguntar-lhe o motivo, disse-lhe que estávamos esperando por ele. Só faltava a sua presença para que fossemos para o aeroporto. Ele disse que seus pais queriam falar comigo, e que se eu pudesse esperar somente uns minutos, ele logo desceria comigo ao encontro dos demais. Aguardei em uma sala que era dividida por uma cortina feita com plástico de proteção, e em três minutos seus pais chegavam, cabisbaixos, com os olhos cansados, para pedir desculpas por todo aquele incidente que ocorrera na associação de moradores. O pai falara que sua intenção era matar-me ali mesmo, mas naquela hora percebera que a minha coragem havia inspirado seu filho, e que isso era muito mais importante do que a ofensa de "negro". A bem da verdade eu não tinha muito tempo para discutir sobre aquilo, e aceitando rapidamente as suas desculpas partimos todos para encontrar com as outras crianças , que esperavam lá embaixo ansiosas. Por momentos esquecíamos de tudo e seguimos para o aeroporto felizes por poder dividir aquele momento tão especial. Hoje meu aluno é professor de Inglês em uma universidade na cidade do Rio de Janeiro, casou-se com uma jovem do Movimento Negro do Rio de Janeiro, é militante, e sempre tenho muito prazer em reencontrá-lo. Falamos em inglês - creio que seja uma forma de relembrar as raízes de nossa amizade - nunca comentamos sobre o incidente. Os demais seguiram suas vidas acadêmicas com sucesso, e fiquei muito feliz em dividir uma cabine de tradução no primeiro FORUM SOCIAL MUNDIAL em Porto Alegre com uma de "minhas crias" que hoje também é tradutor. Muita saudade daquele tempo em que era vassalo da educação, e que essa se apossava de meu corpo para dar passagem ao meus sonhos. Muita saudade de minhas crianças que contribuíram tanto para que eu me tornasse a criança adulta que hoje sou.

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