Visão.

Não me recordo bem o ano em que o fato aconteceu, mas tenho a mais espartana das certezas que foi entre 1973 e 1974, já que os fatos apartir desses anos são muito claros em minha mente, escravizada pela minha memória. Minha vó paterna era uma mulher muito religiosa. Havia em sua casa um altar repleto de pequenas esculturas de Santos - na realidade só havia espaço para uma figura masculina quase assexuada, um pequeno menino Jesús de Praga, vestido de rendas bordadas. Havia uma escultura em especial, da Virgem de Fátima, trazida de Portugal por uma juíza de Direito influente, para quem minha avó trabalhava desde a morte de meu avô, como sua governanta. Aquela imagem santificada de Fátima, traduzia toda a submissão à fé católica, aliada ao estigma português de reverência ao poder político herdada de minha família paterna, pela forte e efêmera presença lusitana de meu avô. Não era à Fátima, de fato a reverência. As atençōes dispensadas à imagem vinham do orgulho de minha vó de poder possuir algo que representava um ritual onde o poder supremo a escolhera como recipiente:- A senhora juíza Joana Castro havia lembrado de sua fiél governanta em uma de suas viagens, e isso era algo sagrado. Fátima, em seu altar, era muito mais que a suposta visão miraculosa da Virgem. Fátima era seu atestado de existência, atribuida a ela por um ser que emanava respeito, soberania e poder: a senhora juíza Joana de Castro. Essa relação com a idéia de submissão no entanto, nunca nos afetou de forma direta. Embora com ajuda de minha mãe sempre tentávamos entender as excentricidades da familia de meu pai como algo cultural, ingênuo e por vezes uma manifestação pura da ignorância de indivíduos que nada experimentaram na vida, a não ser a exploração, portanto não reconhecendo o valor real da,busca pela liberdade. O fato é que em um natal acontecido entre um ano e outro citado previamente, uma estória surpreendente solidificou essa prostação ao poder absoluto da juíza Castro na família de meu pai. Minha vó reunia anualmente todos os filhos em sua casa para um grande jantar à véspera da noite de natal. Minha mãe, eu e minha irmã nunca íamos. Só vim a entender que aquela era uma tradição que pertencia à familia de nosso pai, e não à nossa como um todo - já que a familia de minha mãe não professava a mesma fé - após longos anos de questionamentos solitários. Em um daqueles anos, meu pai, por algum motivo decidira nos levar para sociabilizamos com sua família. Naquela época, pouco tinhamos acesso as reuniões na casa de nossa avó, a quem descobri muito além daqueles anos, que foi uma guerreira ao longo de toda a sua vida. Nos vestimos - lembro-me de minha alegria e falácia de tanta excitação por estar indo para a casa de minha vó, compartilhar algo tão especial, e rever meus primos a quem tanto amava. Não recordo muito bem sobre as emoções de minha irmã, mas tenho a vívida imagem de minha mãe calçando seus sapatos altos brancos, vestindo um vestido muito simples mas muito elegante, lembrando-nos que deveríamos nos comportar. Também entendi muitos anos depois, no auge de minha inquieta adolescência o porquê de todas as suas preocupações, mesmo sabendo que eu e minha irmã éramos muito comportados. Chegamos à festa de minha avó as 11:30 da noite, já que a tradição era o jantar ser servido à meia noite. A casa inteira cheirava à boa comida. Minha avó nos recebeu, pedimos-lhe sua benção - assim agiam as crianças de minha época - e fomos buscar nossos primos para saber das novidades. Minha tia mais jovem estava atrasada, e pelo andar da carruagem, já deveria estar em casa há mais tempo. Todos já estavam aflitos, uma vez que so fôra entregar alguns serviços atrasados de minha avó, quem sem tempo por causa do jantar, a enviou à casa da juíza. Ao passar pelo quarto de minha avó - sempre tive muito medo de esculturas de santos - ví que ardiam em chamas velas brancas perfumadas, aos pés da Virgem de Fátima, presente da juíza à minha avó. Interpretava tudo aquilo em meu imaginário imfantil como algo macabro, mas tentava ignorar meus sentimentos sobre aquilo, e tentar me divertir brincando de pique-esconde com meus primos. Como minha tia não chegava, minha avó decidiu chamar os filhos e iniciar o jantar, sem muito ritual. Deu a honra a minha mãe, que num misto de timidez e alegria, começou a servir primeiro a meu pai, e depois a mim e minha irmã. Quando estávamos no meio do jantar, eis que surge pela porta principal, minha tia mais jovem úmidecida em prantos, a soluçar de emoção, e a assustar a todos que a fitavam com perplexidade, perguntando-se o que poderia ter acontecido. Nossas atenções voltaram-se completamente a ela, que por momentos a fio sucumbira sua voz em soluços. Minha mãe, com um copo com água em suas mãos, e um olhar carinhoso, pergutara a minha tia o que acontecêra, e esta começara a relatar-lhe o acontecido. Minha tia contara que chegara à casa da juíza por volta das seis horas da tarde, segundo a tradição católica, a hora da Ave Maria. E que lhe pedira um tempo para rezar, antes de receber os papéis enviados por minha avó. Minha tia esperara na ante-sala que ficava entre a porta principal e um pequeno corredor que levava a um oratório, onde a juíza costumava rezar, e de onde podia-se ouvir suas orações em latin. De súbito, minha tia perceber a que a voz que vinha de dentro do oratório parecia trêmula, e que algo de estranho acontecia naquele lugar. Tentando não invadir a privacidade da patrôa de sua mãe, tentou olhar ao redor para ver se via algo ou alguém para comunicar que havia algo errado, e que a juíza parara de rezar como de costume, e que sua voz parecia sufocada. Como não encontrava a ninguém, resolvera checar para saber o que acontecia. Foi aí que deparou-se com aquela senhora em estado de transe, prostrada ao chão como uma estigmata, com os olhos arregalados e inundados de lágrimas, sussurrando roucamente que um milagre acontecêra logo ali na frente de seus olhos. Minha tia atônita, pediu-lhe para contar o que havia ocorrido, e a juíza dissera que enquanto orava, o menino Jesus em carne, osso e sangue aparecêra para ela ali naquele oratório, e sem falar-lhe nada, saíra em direção a porta de saida, lá onde minha tia se encontrava. Minha tia, uma menina na época, suplicou-lhe que lhe dissesse como se parecia tal visão. Então a juíza Castro descreveu-lhe uma criança loira, com cabelos cacheados tocando seus ombros, vestido com uma túnica branca e cheirando a Flores do campo. Minha tia começara a chorar, e entendera que aquela visão realmente fazia sentido, já que todas as referências que a juíza dera, coincindira com a Imagem de Jesus de Praga do altar de minha avó. Em um canto da sala de estar, com os olhos estarrecidos de pavor, eu ouvia aquela estória absorto, pensando no fato de que horas antes daquela situação surreal, eu passara pelo quarto de minha avó, e só avistara Fátima, cercada das luzes perfumadas da fé católica de minha vó. Sim! Podia ser verdade! Podia ser que fizesse sentido, já que não vira o menino entre as outras esculturas. O que teria ele ido fazer na casa da juíza? E por quê não aparecêra primeiro a minha avó, cuja a fé devotara àquela criatura o único posto masculino entre os outros elementos de suas crendices? O que haveria de anormal na aparição de um menino loiro à uma fidalga na noite de natal? - interrogava eu a minha mãe que ouvia a estória de minha tia com um olhar sábio, como se entendesse tudo o que se passava ali naquela sala. Minha vó se benzia, minhas outras tias choravam, e parecia que a familia inteira havia se desdobrado em uma catarse coletiva, com excecção à nossa familia, que talvez por não participar da vida cultural da familia de meu pai, não sabia bem como reagir. Lembro-me de termos voltado para casa em silêncio, sem sequer um sussurro de uma respiração breve, como se um código de ética se estabelecesse entre nossa pequena familia e o resto da familia de meu pai. Anos depois ao completar 18 anos, minha tia fôra convidada para trabalhar com a juîza, o que foi visto como uma honra para a familia de meu pai. Honra, reverência e sublimação marcavam aquela relação de subserviência - a juíza que personificara os preceitos da base da fé de minha avó, e aquela que fôra escolhida para manter a miraculosa estória de natal. Minha tia dedicou quase todos os anos de sua vida à juíza, que em seu testamento deixara apenas uma foto pequena de seu neto, um robusto menino português que a visitara há muitos anos, em uma bela noite de natal, onde ficara tão emocionada com sua presença que perdêra a voz. No verso da foto, uma dedicatória: À MINHA QUERIDA E AMADA AVÓ JOANA, QUE DURANTE SUA VIDA INTEIRA TRATOU-ME PELO DOCE VULGO DE MENINO JESÚS. Assina: Jacyntho Castro.

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